[I] Esse é tempo de partido Tempo de homens partidos Em vão percorremos volumes Viajamos e nos colorimos A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua Os homens pedem carne fogo sapatos As leis não bastam os lírios não nascem Da lei meu nome é tumulto, e escreve-se Na pedra Visito os fatos, não te encontro Onde te ocultas, precária síntese Penhor de meu sono, luz Dormindo acesa na varanda? Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo Sobe ao ombro para contar-me A cidade dos homens completos Calo-me, espero, decifro As coisas talvez melhorem São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto Tenho palavras em mim buscando canal São roucas e duras Irritadas, enérgicas Comprimidas há tanto tempo Perderam o sentido, apenas querem explodir [II] Esse é tempo de divisas Tempo de gente cortada De mãos viajando sem braços Obscenos gestos avulsos Mudou-se a rua da infância E o vestido vermelho Vermelho Cobre a nudez do amor Ao relento, no vale Símbolos obscuros se multiplicam Guerra, verdade, flores? Dos laboratórios platônicos mobilizados Vem um sopro que cresta as faces E dissipa, na praia, as palavras A escuridão estende-se mas não elimina O sucedâneo da estrela nas mãos Certas partes de nós como brilham! São unhas Anéis, pérolas, cigarros, lanternas São partes mais íntimas E pulsação, o ofego E o ar da noite é o estritamente necessário Para continuar, e continuamos [III] E continuamos é tempo de muletas Tempo de mortos faladores E velhas paralíticas, nostálgicas de bailado Mas ainda é tempo de viver e contar Certas histórias não se perderam Conheço bem esta casa Pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se A sala grande conduz a quartos terríveis Como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa Conduz à copa de frutas ácidas Ao claro jardim central, à água Que goteja e segreda O incesto, a bênção, a partida Conduz às celas fechadas, que contêm Papéis? Crimes? Moedas? Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano Ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta Moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco Pessoas e coisas enigmáticas, contai Capa de poeira dos pianos desmantelados, contai Velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai Ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da Costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai Tudo tão difícil depois que vos calastes E muitos de vós nunca se abriram [IV] É tempo de meio silêncio De boca gelada e murmúrio Palavra indireta, aviso Na esquina tempo de cinco sentidos Num só o espião janta conosco É tempo de cortinas pardas De céu neutro, política Na maçã, no santo, no gozo Amor e desamor, cólera Branda, gim com água tônica Olhos pintados Dentes de vidro Grotesca língua torcida A isso chamamos: Balanço No beco Apenas um muro Sobre ele a polícia No céu da propaganda Aves anunciam A glória No quarto Irrisão e três colarinhos sujos [V] Escuta a hora formidável do almoço Na cidade os escritórios, num passe, esvaziam-se As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos! Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa Olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida Mais tarde será o de amor Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem O esplêndido negócio insinua-se no tráfego Multidões que o cruzam não veem é sem cor e sem cheiro Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul Vem na areia, no telefone, na batalha de aviões Toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem Escuta a hora espandongada da volta Homem depois de homem, mulher, criança, homem Roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa Homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem Imaginam esperar qualquer coisa E se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se Últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa Já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia O corpo ao lado do corpo, afinal distendido Com as calças despido o incômodo pensamento de escravo Escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir Errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor Confiar-se ao que bem me importa Do sono Escuta o horrível emprego do dia Em todos os países de fala humana A falsificação das palavras pingando nos jornais O mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores Os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar A constelação das formigas e usurários A má poesia, o mau romance Os frágeis que se entregam à proteção do basilisco O homem feio, de mortal feiúra Passeando de bote Num sinistro crepúsculo de sábado [VI] Nos porões da família Orquídeas e opções De compra e desquite A gravidez elétrica Já não traz delíquios Crianças alérgicas Trocam-se; reformam-se Há uma implacável Guerra às baratas Contam-se histórias Por correspondência A mesa reúne Um copo, uma faca E a cama devora Tua solidão Salva-se a honra E a herança do gado [VII] Ou não se salva, e é o mesmo há soluções, há bálsamos Para cada hora e dor há fortes bálsamos Dores de classe, de sangrenta fúria E plácido rosto e há mínimos Bálsamos, recalcadas dores ignóbeis Lesões que nenhum governo autoriza Não obstante doem Melancolias insubornáveis Ira, reprovação, desgosto Desse chapéu velho, da rua lodosa, do estado Há o pranto no teatro No palco? No público? Nas poltronas? Há sobretudo o pranto no teatro Já tarde, já confuso Ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo Vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos Vai molhar, na roça madura, o milho ondulante E secar ao Sol, em poça amarga E dentro do pranto minha face trocista Meu olho que ri e despreza Minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado Que polui a essência mesma dos diamantes [VIII] O poeta Declina de toda responsabilidade Na marcha do mundo capitalista E com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas Prometa ajudar A destruí-lo Como uma pedreira, uma floresta Um verme