São quatro da manhã, o som do busão já ressoa É sinal que o dia começa, a labuta não perdoa Jogo água no rosto, padoca pra comprar pão Um café no peito e parto rumo à estação No ponto o frio castiga, encapotado até o osso Queria dormir mais, mas a insônia não dá descanso O busão chega, dou sinal com mais cem Cavalheirismo morre, ninguém quer perder o trem Pé pisado, empurrão, é o corre do operário Na adrenalina da porta, pendurado, cenário diário Se segura na unha, quem duvida não viu Só Deus mesmo pra provar o que já se assistiu Falação rola solta: Política, mulher, futebol Tudo pra distrair da rotina sem farol Duas horas sacudindo: Pra cá, pra lá Se esse trem não virar, um dia eu chego lá Meu irmão vai além, todo dia é missão Guarulhos a Diadema, é trilha de leão Trampo, escola, madrugada, o ciclo se repete Meia-noite em casa, quatro da manhã de pé Eu não canto ilusão, canto o chão que eu piso Do busão lotado, da vida sem aviso Enquanto uns falam de amor ou de fumaça no ar Eu sou a voz do trabalhador, tentando respirar No serviço é zoeira, pra esquecer o tormento Rir é resistência, é escape do sofrimento Depois do trampo, alguns seguem pro bar Outros vão pra casa, com mil contas pra pagar Roupa pras crianças, compra do mês na mão Aluguel, luz, água, tudo vira pressão O salário não dá, roupa nova vai esperar Investir em si mesmo? Melhor nem sonhar Na escola os moleque não vão bem A mãe tá trampando, já tem bebê também Não tem creche nem escola integral E muitos nem chegam ao final do fundamental Cinco da tarde, o sinal soa sem piedade É hora do busão de novo, da cidade Na janela vejo o playba no carrão No zap, na contramão, sem prestar atenção Num zig-zag absurdo, atropela um Fusquinha Que sai como errado: Era o Seu José, da vizinhança Trabalhador velho, pedreiro de verdade Perdeu a vida por causa de uma insanidade Eu não canto ilusão, canto o chão que eu piso Do busão lotado, da vida sem aviso Enquanto uns falam de amor ou de fumaça no ar Eu sou a voz do trabalhador, tentando respirar Metrô cheio, ponte pequena, dilema cruel Chegar vivo em casa virou troféu Não passei no Cocaia, nem vi os meus parça Trampar em dois turnos bagunça sua praça Família, amigos, mina, tudo perde espaço Só deitar e dormir, no descanso escasso Os sonhos viram pesadelo na conta bancária Um salário de fome, uma vida precária Aposentadoria? Que piada sem graça Nem compra remédio, nem segura a desgraça Condução gratuita só depois dos sessenta Mas busão vazio? Nem nas lendas Quarenta assentos, dois são pra quem precisa O resto vai no lucro da firma da filha da prima Do prefeito, que mora em casa oficial Com carro, motorista e jatinho especial Dois mandatos e ele já pode parar Mas quer mais e mais, então segue a roubar Enquanto o povo acredita no rouba mas faz A vila segue sem médico, sem gás Eu não canto ilusão, canto o chão que eu piso Do busão lotado, da vida sem aviso Enquanto uns falam de amor ou de fumaça no ar Eu sou a voz do trabalhador, tentando respirar