Quando eu era pequenino, dentro de mim vivia um menino
Viveu muito tempo no escuro, tinha medo do escuro
Viveu muito tempo com medo
É que esse menino não era bem menino, digo
Não era como devia ser um menino, quer dizer
Era diferente do menino que me ensinaram a ser
Chorava quando não era pra chorar
Sentia o que não era pra sentir
Pensava umas coisas que não eram as coisas que os outros meninos pensavam
O problema é que ele fazia isso tudo dentro de mim
E eu morria de vergonha que alguém visse, ouvisse, percebesse
Imagina só que horror, que constrangimento
Então eu afundava ele mais e mais fundo lá dentro
Trancava a sete mil chaves, mandava ficar quieto
Mas não adiantava, quanto mais eu tentava abafar mais ele esperneava
E acabava que de vez em quando algum lamento escapava
E era cada bronca, cada sova, cada surra que eu levava
Por causa do menino
Eu tentava explicar: Não sou eu, é o menino!
Mas cê acha que alguém acreditava? Nada!
Eu apanhava e a culpa era do menino
Eu odiava o menino
Aí de repente um belo dia o menino parou De chorar lá dentro
E eu pensei: Bom, que bom, quem sabe agora eu tenho um pouco de paz
Mas logo em seguida eu comecei a ouvir um som diferente
Vinha lá de dentro e não era choro, nem lamento, nem grito
Nem reclamação, era outra coisa, o menino, vejam vocês, o menino
O menino cantava
Cantava e cantava bonito, isso eu tenho que admitir
Tão bonito que eu me distraí um segundinho, baixei a guarda
E a voz do menino veio subindo lá do fundo, veio vindo até a boca
E quando eu vi tava cantando junto com ele
Todo mundo ouviu a gente cantando, mas dessa vez não teve bronca
Nem sova, nem surra que pudesse parar
A luz acendeu de repente, eu cantava, o menino cantava
E por mais que ainda olhem feio de vez em quando
Eu de repente não ligo mais nem um pouco pra isso
Tô nem aí, sigo cantando tranquilo
Porque o menino agora não tem mais medo do escuro
Não tem medo do escuro