No princípio criou Deus todas as coisas
Essa é a primeira frase do Grande Livro
Não é a frase mais antiga desse livro
Nem é a mais longa
Mas certamente é a mais funda
Não tem açude no mundo que seja mais profundo
Nem o mar todinho que quase enche a terra toda
Seria o bastante pra preencher completamente
A fundura dessa frase
No princípio criou Deus todas as coisas
Aqui a gente vê que Deus, por exemplo
É maior do que as coisas
Porque todas as coisas tiveram seu princípio
O início é constituído pelas coisas criadas
E as coisas criadas empurram o ponteiro das horas pra direita
Dá começo a tudo
Mas Deus, Deus, meu parceiro
É maior que as coisas e maior que o tempo
Maior que o início
Ele é antes do início
É por isso que eu prefiro dizer assim
Deus, no princípio, criou
Ao invés de: No princípio criou Deus
Porque até aqui, na sequência das palavras
A gente pode estabelecer uma relação de causa e efeito
Deus causa o efeito chamado coisas
Deus causa o efeito chamado tempo
Mas ele é a causa não causada
É isso, é isso, Marco
Exatamente isso
Essa doença da gente de deslizar coisas
Seria definida e sanada
Se a gente pudesse transformar essa frase em um soro
E perfurasse nossa pele
E preenchesse nossas veias
Com a espiritualidade dessa frase
As coisas começaram
Isso significa que elas são ridiculamente temporais
Tudo que começa tem fim
Qualquer ser humano que preze pela sensatez
Abandona rápido a ideia de desejar e se amparar nas coisas
Ele percebe que divinizar as coisas
É como se agarrar um pequeno pedaço de papel no meio do mar
Com a esperança de boiar
Diga aí, é ridículo
A gente precisa de algo mais sólido do que as coisas
E aqui tá dizendo
No princípio, Deus
E um poeta disse
Coisas são só coisas, servem só pra tropeçar
Deus, no princípio
Um poeta, né? Um poeta
Eu conheço esse poeta
E eu conheço as brenha onde ele saiu
Lá do Catolé do Rocha
Coisas são só coisas
E como se não bastasse essa pequena frase
Que já nos faz refletir tudo isso
Ainda nos entrega a mais terna informação
Sobre o caráter de Deus
No princípio, Deus criou, aliás, aliás
Deus, no princípio, criou
A primeira informação que temos sobre Deus
O primeiro traço de seu caráter
Que nos é apresentado no seu próprio livro
O atributo que reluz na escuridão de nossa ignorância
Como o primeiro raio de sol
Que rasga as trevas da madrugada
É esse aqui
Deus é arteiro
O Grande Livro, a Bíblia
Ainda vai falar muita coisa sobre o nosso Deus
Tanta informação
Cada uma mais surpreendente que a outra
Mas ela começa sua narrativa sobre o divino
Nos apresentando o primeiro aspecto de sua face
Ele é arteiro
Diga aí, meu cumpade artista
Deus é arteiro?
Imagina só a grandeza disso
Imagina só os artistas de toda a terra ouvindo isso
Deus é o arteiro, o artesanato
A matéria-prima e o artefato
Deus, quando escolheu se revelar ao mundo
Preferiu que o primeiro aspecto de sua majestade
Entregue a nós fosse esse
Deus é um artista
Ele viria a ser apresentado um dia
Como um grande advogado
Depois um médico
Um juiz
Um comandante
Até na face de uma mulher
Que procura com diligência sua dracma perdida
Ele um dia haveria de se apresentar
Mas aqui
Como primeira grande informação de seu ser ao mundo
Temos isso
Olá, humanidade
Eu sou um artista
Primeiro de tudo e antes de mais nada
Saibam, eu crio
É isso, Daguiar
Ele se revelou como um artista
E o Colcha de Retalhos
É um reflexo do Deus que ama criar mesmo
Ama as cores, todas elas
Ama as formas
Das mais simétricas às mais acidentadas
Ele cria, molda, sopra e dorme feliz, sorridente
Desfrutando de tudo que criou
Todo movimento humano
Que se proponha uniformizar as coisas criadas de Deus
É um ato de rebelião
É o que eu penso
Contra seu atributo primário, criador
Ouvi dizer por aí, Daguia
Que toda vez que alguém aqui ou acolá
Diz que música certa pra congregação é essa ou aquela
Um anjo chora em algum lugar
E ouvi dizer também
Que toda vez que alguém insiste em elaborar
Uma paleta de cores e formas para o canto, o riso e a roupa
Algum demônio sorri satisfeito
Tá certíssimo, meu irmão
Certíssimo, Marco
Formas e roupas são coisas
E coisas são só coisas
Servem só pra tropeçar
Têm seu brilho no começo
Mas se viram pelo avesso
São fardos pra carregar
E eu?
Deus me livre
Me rebelar contra Deus
O Colcha de Retalhos
É a música feita por cristãos que amam criar
E se submetem com integridade
Ao Deus que é como eles
Embora infinitamente superior
Um Deus arteiro
O perfeito e primeiro deles
O artista supremo
Colcha de Retalhos é música da igreja
É música de igreja
Feita no chão do Nordeste
Por gente redimida
Desde o início das coisas
Para a igreja brasileira cantarolar
Lá-laiá, lá-laiá, lá-laiá
Sempre que se reunir
E aonde quer que esse encontro aconteça
Sem mais medo, medo nenhum
O medo se vai
De quebrar o protocolo da uniformização
Imposta por quem veio de fora
Colcha de Retalhos
É a única resposta possível da gente, Daguia
É a única resposta possível
De um Brasil que foi silenciado em seu louvor
Suas cores e seus tambores
Por tempo demais
Mas agora resolveu cantar
Laiê, laiá, laiá
Cantar em brasilês
Um coração eterno
Se expressando coletivamente
Numa linguagem temporal e bem localizada
É esse o nosso Brasil
Ele quem quis